Relato 09/07 Fatu-Hiva I
A vista de Fatu-Hiva da nossa ancoragem é uma coisa indescritível! São montanhas com picos estreitos e altos, como dedos. Dizem os locais, que a baia era chamada de Baia de Verges (Penis - isso mesmo, só que em Francês). Quando chegaram os padres, eles trocaram o nome para Baia de Vierges (Virgens). Me pergunto o que mais esses padres deceparam por aqui...
Os locais, são descendentes dos polinésios, falam a língua local além de Francês. Na sua maior parte, eles totalmente ignoram a sua presença, a não ser pelas crianças. Elas sempre se aproximam e perguntam se temos bom-bom. Como a prática aqui é a troca, nos primeiros dias, pedíamos algo em troca, em geral, alguma fruta local com um saco de limão, laranja, grapefruit ou banana. Algo que elas pudessem pegar com facilidade. Alguns pirulitos depois e estávamos com o barco cheio dessas frutas. Através das crianças, nos aproximamos dos pais e assim começou um relacionamento baseado em trocas. Uma lavagem de roupa por uns cremes e um perfume, uma galinha e um pedaço de cabra selvagem (caçada) por três latas de cerveja e um resto de pinga, um cacho de banana mais uma caixa cheia de limões, laranjas e grapefruits, por uma garrafa de whisky, e tem mais trocas pela frente. Quando tentamos pagar por umas frutas, eles devolveram nosso dinheiro, uma nota de cinco dólares. Aos próximos que por aqui vierem, recomendamos trazerem colares, brincos, batons, cadernos, lápis, canetas, borrachas, todos itens de alto valor nas trocas. Lógico que bebida e cigarro é uma forte moeda de troca também, mas me faz sentir mal promover esses vícios, principalmente nos mais jovens.
As crianças são sadias e bonitas, mas em alguns, percebe-se o problema do casamento entre primos e parentes.
Para atracar, existe uma parede de pedras que protege o portinho de ondulações e pode-se deixar o bote sem qualquer preocupação.
A primeira coisa que se vê, alem dos aparatos de pesca normais de qualquer cidade costeira, é um campinho de futebol. Atrás dele começa a cidadezinha, com duas ruas paralelas seguindo pelo fundo de um vale entre esses picos e montanhas. Muito comum o deslizamento de pedras por aqui, e enquanto estávamos aqui caiu uma pedra em cima de um caminhão que transportava areia do porto até uma pontezinha que estão construindo. Parece que tudo aqui é subsidiado pela França. Não se vê ninguém trabalhando, somente alguma atividade de pesca para consumo próprio. Tem uma escola, uma igrejinha, e a maioria parece serem católicos.
Na nossa primeira caminhada para fora do barco, depois de 20 dias vivendo somente no pequeno espaço da nossa bolha de sobrevivência, fomos esticar um pouca as canelas e caminhamos. O caminho, com montanhas dos dois lados, segue sinuoso até uma subida, que leva à uma outra cidadezinha, dizem maior que essa que estamos.
Vimos muitas frutas e negociamos umas trocas para o dia seguinte.
No nosso segundo dia veio ao barco dois rapazes de uns 20 anos, oferecendo peixe em troca de bebida. Disse que só tinha uma garrafa de whisky e os seus olhos se acenderam! Combinamos de trocar por bananas, laranjas, limões e grapefruits, e eles pediram a garrafa. Disse que quando eles trouxessem a parte deles da troca. Daí umas duas horas eles voltaram com sacolas de frutas e uma penca de bananas. Troquei na garrafa e eles pediram para entrar no barco. Não conhecendo o costume, e um pouco receoso, permiti e fiquei com eles no cockpit. Eles pediam armas, munição, arpão, roupa de mergulho, cordas, e eu só saindo de todas. Em um momento, entrei para pegar meu livro de peixes comprado em Los Roques, para eles me mostrarem os peixes comestíveis locais. Foi o suficiente para eles surrupiarem minha lanterna led de cabeça que uso em navegação noturna!!! Gatunos... ainda estou pensando em como pego eles de volta... mas por enquanto vou levando como se nada houvesse acontecido, pois, por aqui não tem policia. É um sistema tribal, onde os mais velhos controlam a todos. Aparentemente os que cometem delitos têm algum tipo de punição, mas pode-se ver que os jovens são uma preocupação de todos, pois eles têm até cinco cachorros por casa, além de pedir armas e munição para “proteção”.
Cada dia nos aprofundamos mais para dentro da ilha nas nossas caminhadas. Ontem fomos pela segunda vez tentar achar uma cachoeira dita ser linda, por aqui. Chegamos mais próximos, mas sem charuto ainda. Acabamos tomando banho em umas corredeiras e voltamos, pois já estava ficando escuro. No caminho, colhemos côcos verdes, bebemos água de côco, e comemos a carne branca. Chupamos limão também.
Na nossa segunda noite dormindo na baia, escutamos uma batucada das boas, mas com ritmos desconhecidos. No dia seguinte, durante uma das negociações de trocas, as crianças combinaram de nos passar os pacotes de frutas na “dança”. Perguntamos sobre a dança, mas não entendemos as respostas, pois só falam francês e a língua nativa marquesan. Mas entendemos que seria as 7 horas da noite no campinho de futebol. Depois de banho tomado, vestimos uma roupinha melhor, e fomos de botinho para a cidade. Lá chegando, fizemos as trocas negociadas, e fomos ver a tal da dança. Um privilégio poder ver essas formas de expressão cultural locais. Já havíamos visto algo parecido na aldeia Kuna do Tigre, e agora, uma autêntica demonstração da cultura polinésia. Haviam uns 30 homens, entre rapazes e adultos, e um igual número de moças e mulheres, todos dançando em conjunto, os homens com movimentos fortes, tipo que imitando movimentos na pesca ou em lutas, e as mulheres com movimentos sensuais, incluindo aqueles rebolados pelas quais são conhecidas as Polinésias. Todos dançavam aos sons de tambores de todos os tamanhos. Alguns mais altos do que um homem, e quem os tocava ficava em cima de uns troncos de madeira. Os ritmos variavam assim como os movimentos.
Com a chegada dos franceses do barco Ascaria, conseguimos entender melhor o que estava se passando, pois eles falam inglês e iam nos traduzindo ou explicando algumas das coisas que estavam se passando. Entendemos que a dança era um treino para a comemoração de 14 de Julho, dia da independência da França e que iria ter uma feira e festejos no Sábado, então decidimos ficar até Domingo e participar dessas festividades.
Enquanto ficamos por aqui, trabalhei no conserto do guarda mancebo que entortou no encontro com o Independence e percebi outro erro terrível na construção do barco. Os porta colunas não tem furo de vazamento da água salgada que acumula dentro e isso explica porque todas as bases das colunas estão enferrujadas e vazam ferrugem para o gel do casco. Só teria sido necessário um furinho para deixar a água sair... mas para tanto, seria necessário serviço qualificado...
Explico. Classifico de serviço porco, aquele serviço que foi feito errado de propósito, como o parafuso falso na base do piloto. Encontrar aquilo no meu barco mudou minha atitude com relação ao estaleiro e a partir daquele momento, não perdôo o menor deslize na construção do barco. Serviço desqualificado é serviço feito errado, mas não necessariamente de propósito, mas sim por falta de qualificação na mão de obra empregada.
Então, guincho instalado fora de alinhamento com a corrente, que vou consertar por esses dias, todos os vazamentos, o sofá da sala, cujas fotos vão demonstrar claramente o que chamo de serviço desqualificado, assim como todas as manutenções que tenho feito por causa disso.
Eu tinha duas colunas extras e usei uma para substituir a que entortou. Desmontei e desentortei o parafuso da base da coluna, e refiz os guarda-mancebos.
Na sala, troquei todos os parafusos finos e sem arruelas que foram usados na montagem do sofá, sempre documentando com foto do antes e do depois, e os substitui por parafusos mais grossos e com cabeça chata e grande. Além disso, colei as áreas que estavam se movimentando e adicionei vários parafusos onde deviam ter, mas não tinham. O resultado é notável! Nenhum barulho vindo do sofá da sala quando o barco se mexe!
Bom, deixa-me voltar para os trabalhos. Hoje vamos pegar as roupas lavadas com a Ana e finalizar essa troca, e acho que será a primeira vez que uma Polinésia de Fatu-Hiva vai usar cremes da Ox, uma das nossas empresas colaboradoras. A Ana é escultora e faz estátuas de madeira com um deus local, mais tartarugas e outros animais. As crianças tem adorado as barrinhas de cereal da Nutrimental, outra empresa colaboradora. Depois vamos pagar uma visita à casa de uma das crianças que tem trocado com a gente, convidados por sua mãe. Ela quer trocar um quadro esculpido, por alguma coisa que tenhamos que a interesse.