Como planejado, saímos às duas da tarde da Danga Bay Marina em Johor Bahru, onde o Matajusi ficou durante onze meses enquanto fomos resolver pendências no Brasil, e iniciamos nossa navegação na direção da Tailândia, aproveitando a maré alta, que além de nos dar mais profundidade, ainda nos empurrava na direção certa. Em quatro horas alcançamos a área de ancoradouro de navios, entre Noroeste Singapura , Sudoeste Malásia e a entrada Sul do Estreito de Malaca, jogando ancora em profundidade de sete metros, com trinta metros de corrente para garantir uma ancoragem segura. Preparamos o barco para a noite e fomos dormir.
Em retrospecção, além de todo o trabalho de manutenção normal de um barco, tivemos poucos problemas com o barco parado. Trocamos o regulador de voltagem das placas solares e encontramos um fio solto embaixo do mastro, o que impossibilitava as luzes de navegação e ancoragem de ligarem. Além disso, descobrimos algum vazamento de água de alguma parte entre os tanques e mangueiras de água doce, antes da bomba de pressurização, que vai nos dar uma boa dor de cabeça para resolver, pois, olhando onde conseguimos olhar, já percebemos uma vazamento do tanque de água doce de Boreste (direito), de acesso completamente impossivel sem desmontar metade dos móveis da sala, além de ter que cortar algum pedaço de fibra ao redor da área onde foi instalada a saída de água doce desse tanque, pois de lá, com certeza , tem água saindo por onde não devia, mas, como já disse antes, agora não adianta desesperar, vamos consertando e arrumando tudo que vai dando problema e tocando a vidinha normal de manutenção a bordo de um veleiro fazendo uma viagem como essa. No final, a um custo mais alto e com muito trabalho, tudo no barco vai estar melhor do que quando começamos.
Depois de uma pequena singradura (distancia navegada) de dezesseis milhas no primeiro dia de navegação, fizemos um pouco mais de cinqüenta milhas durante o segundo dia, ancorando no final da tarde antes do escurecer, na frente de uma pequena aldeia de pescadores na costa Oeste da Malásia. Ainda estamos nos familiarizando com as correntes promovidas pelas marés, assim podemos ter uma performance melhor durante as horas navegadas. Não que isso seja uma corrida, mas, faz uma diferença de quase quatro nós na velocidade do barco, o que afeta tremendamente a singradura conseguida. Não me lembro de ter estudado para que lado corre a maré, mas a percepção, pelos menos nessa área, é que a maré vazante promove corrente para o norte, o que conseqüentemente, maré enchente promove corrente para o sul. Para lembrar, olhando o gráfico na tabua da maré disponível no Plotter, vejo a curva ascendente da maré enchente e curva descendente da maré vazante, ou seja, sobe uma subida, e portanto mais devagar na enchente e desce ladeira abaixo da maré vazante. Aí me ponho a pensar na teoria aprendida e lembro que a maré é promovida pela força de gravidade da Lua, mas a Lua passa de Leste para Oeste, e deve passar duas vezes por dia, pois tem duas marés por dia... Então a maré deve encher pelo Leste e esvaziar para o Oeste... mas, quando tem terra pelo caminho, a posição da terra deve promover mudança na direção da corrente das marés... Hum, as coisas que temos tempo de pensar quando estamos vivendo a bordo, sem televisão, sem noticias ruins...
Depois de outra noite bem dormida, na tranqüilidade da ancoragem escolhida, perturbada somente pela troca na posição do barco promovida pelas mudanças da maré, levantamos ancora, seguindo nossa navegação rumo à Tailândia, continuando a nos familiarizar com as coisas do barco e a vida a bordo novamente. Puxa! Quanto esquecemos durante a temporada de vida em terra! Acho que na cabeça não cabe tudo que vamos tendo que lembrar, então, por prioridades, vamos conseguindo guardar somente o que precisamos, mas o importante agora é lembrar de como se veleja com segurança, quando se riza (diminui velas), que cabos usar, em que sequência, como usamos os rádios, o Sailmail, os equipamentos, como desenhamos e acompanhamos as rotas, isso enquanto o tempo vai passando, a distancia vai sendo percorrida, e sem incidentes, no final do dia, vamos procurando mais uma ancoragem para antes do anoitecer.
Mais umas setenta milhas singradas e ancoramos na frente de uma pequena cidade, escondida atrás de um cabo mais acentuado da costa Oeste da Malásia, para tentar ficar fora da influencia da forte corrente promovida pelas marés. Ainda não sentimos segurança em passar a noite navegando, pois são muitas as coisas a serem ainda lembradas, testadas, firmadas na pratica do dia a dia, então vamos navegando somente de dia, e por consequência, temos uma noite bem dormida ancorados. Estamos subindo a costa da Malásia durante os monsuns de Nordeste o que nos pôe com vento na cara a maior parte do tempo. Vamos ajudando com o motor, mas isso vai consumindo nosso diesel. Em geral, temos autonomia de mil milhas, mas isso, usando o motor em baixa rotação. Subir contra o vento e contra a corrente das marés enchentes, força o uso de rotações mais altas do motor e consequentemente, consumo maior de combustível. A um real o litro, isso não é uma grande preocupação por aqui, mas mesmo assim, promove manutenções mais freqüentes no motor, para a troca de óleo e filtros. Não existe ganho sem esforço! Nesse caso, incluindo o esforço de se conseguir provisionar de diesel novamente, e custo do diesel no novo local! E assim passamos nosso terceiro dia a bordo. Com o conhecimento, prática e coragem aumentando dia a dia, nos sentimos mais seguros de tentar a primeira noite navegando, assim estimando nossa próxima ancoragem para depois de umas cem milhas navegadas, observando os conselhos no livro do Jimmy Cornell sugerindo uma parada no Porto de Klang, mas, na pratica não aconteceu assim, pois chovia, ventava e trovejava intensamente, além da visibilidade estar perto do zero quando chegamos próximos ao porto, que acumulado com a presença de muitos navios ancorados e outros navegando, impediram a entrada pelo canal sugerido para alcançar a marina.
Com isso, enfrentamos alguns problemas que não estavam planejados, o primeiro, quando fui baixar a vela mestra enquanto estávamos passando pelo meio dos navios ancorados e ouvi pelo radio um navio chamando outro e avisando se ele não havia visto o veleiro Matajusi à sua frente! Com a pouca visibilidade pela chuva torrencial, consegui ver um navio chegando rápido por Bombordo (esquerda) já a menos de duzentos metros da gente! Corri para o cockpit para desligar o piloto e conseguir desviar do navio chegando rápido em rota de colisão com a gente. Depois de ter feito isso, chamei pelo radio ao navio que havia percebido pelo AIS dele a possibilidade de colisão entre o Dong Jiang e o Matajusi, pois ambos estavam visíveis no AIS, e agradeci ao aviso. Em seguida, e depois do Dong Jiang ter passado a poucos metros da minha proa (frente), uma chamada dele perguntando quais eram as minhas intenções?! Ora! Eu estava em rota, ele ancorado, eu estava subindo à costa, enquanto ele estava cruzando o caminho, e ambos estávamos no AIS, ou seja, eu era pequeno e ele muito grande, portanto, ele optou pela lei do mais forte! Mas, ficou com cara de mal na vista de todos os navios que estavam ancorados na área, pois todos devem ter ido confirmar em seus equipamentos a quase colisão entre esse enorme navio, e esse veleiro com o direito de passagem, então, não restou a ele outra alternativa a não ser tentar melhorar sua posição pelo radio, ao me perguntar, depois dos fatos terem acontecido, quais eram minhas intenções! Na hora, minha vontade era responder pelo radio, com todos escutando, que minha intenção era chegar com vida à Tailândia! Mas, educadamente respondi que estava a caminho de Langkawi e me desviando do trafico local. Ele agradeceu minha resposta e assim continuamos nossa subida, mas, agora com outro problema! Não havia detalhado a rota seguinte ao Porto de Klang, e, Lei de Murphy a parte, como disse o Marçal Ceccon do Rapunzel, se você não fizer o que tem que ser feito, antes, vai pagar o preço depois... e esse preço veio composto pela dificuldade de navegação a noite, próximo a costa, em águas com muitos baixios e outras dificuldades como navios afundados e outras embarcações com seus próprios destinos e objetivos, isso incluindo um rebocador puxando uma balsa enorme, só que, cruzando a nossa rota! Isso enquanto eu ia desenhando uma rota! Quase entramos nos cabos entre o rebocador e seu reboque! No desvio, passamos muito próximos a outra embarcação, fazendo sei lá o que, mas que reclamaram que estávamos muito próximos! O que fazer? Com tantos navios, pescadores, e outras embarcações muito próximos uns dos outros, e enquanto eu tentava desviar dos baixios, e tudo isso a noite, com a corrente contra ao máximo e provocando movimentações estranhas do barco, que pulava de um lado para outro... enfim, acho que deu para desenhar a foto! Sim, estamos relembrando a pratica de navegar...
O bom de tudo isso, foi uma singradura de mais de cento e cinqüenta milhas, e a oportunidade de parar em uma ilha no meio de varias ilhas ao largo de Lumut, que eu não teria tentado e não teria conhecido não fosse o incidente na tentativa de ancoragem em Klang, e o que me rendeu o primeiro mergulho para caça feito na Malásia, até então, uma área que eu desconhecia e considerava completamente morta de vida aquática, pelo menos era o que a aparência sugeria. Escolhi uma enseadinha na ilha de Rambia, e para lá nos dirigimos. Achei a área escolhida, lancei vinte metros de corrente com seis metros de fundo, e fui explorar a área.
Na pequena praia de areia branca, parecendo virgem, percebi dois mergulhadores de Skuba que estavam chegando de volta à praia. Resolvi descer o bote, e aproveitar e testar o motorzinho, que, por Murphy, não funcionou. Assim fui a remo, levando comigo roupa, mascara e pé de pato de mergulho para uma possível exploração sub-aquatica, depois de conversar com os mergulhadores, que eram na verdade um instrutor e um aluno, fazendo seu curso de salvamento, mas deu para ter uma idéia do local. Soube que a ilha era desabitada, que nunca haviam visto um tubarão, que em águas turvas, não é minha companhia favorita embaixo da água, que haviam conchas, e podia-se ver alguns peixes, mas sempre pequenos. Explorando um pouco mais a praia, descobri um monte de lixo atrás da linha das primeiras arvores... os usuários da praia, limpavam a área de visão, mas jogavam atrás das arvores, que estavam abarrotadas de lixo! Sugeri que uma idéia seria ensinar aos freqüentadores da praia a queimarem esse lixo, e ele espantado perguntou, mas isso não iria poluir o ar?!
Fui fazer o primeiro mergulho exploratório que me renderam umas ostras gostosas mas com uma concha duríssima, e umas conchas iguais as que eu já tinha encontrado no Pacífico, grandes, com a boca mais parecendo aqueles cortes de dentes em abobora de dias das bruxas, em zigue-zague, mas muito gostosas, principalmente o músculo, como as vieiras. Enquanto trabalhava em abrir as conchas, percebi alguns peixes maiores curiosos com a minha presença, e decidi ir buscar a arma para tentar uma comidinha diferente a bordo. Meu segundo mergulho rendeu uma garopinha esverdeada, ou era um badejo, mas um peixe daquela família conhecida, em geral com sabor e textura de bom gosto, e mais um budião verde, mas com textura diferente da dos que temos no Brasil, mais parecendo a textura de um robalo. Peixes limpos e preparados para experimentarmos depois, quando enjoados das comidas abastecidas no barco enquanto nossa estada em terra.
Tudo muito lindo, mas há dois dias quase sem dormir e cansados, preparamos o barco para partir logo depois de acordar, estimando umas oito horas de sono, o que nos poria a navegar lá pelas duas da manha, mas, cansado, não percebi o erro na escolha da ancoragem de frente para o mar aberto , que, com o vento da noite, virou um problema perigosíssimo, pois as ondas cresceram e empurravam o barco para as pedras. O barco estava bem ancorado, mas com corais no fundo, e o barco mudando de lugar, prendeu a corrente em baixo de alguns corais. Acordei com o corcovear do barco, e percebi o tamanho do problema! Eram oito da noite, depois de somente três horas de sono, quando fomos estudar a situação para definir as possíveis soluções, que no melhor caso seria levantar ancora e partir, sacudidos, mas são e salvos, mas nos piores casos, podiam incluir perder ou cortar a ancora, bater com o leme em alguma pedra no fundo, entre outros pesadelos piores! Preparados para o pior, mas tentando o nosso melhor, conseguimos desancorar o barco depois de algumas tentativas, com a Lilian tocando no leme e motor e eu dando instruções da frente, ora fora, ora dentro d'água, não antes de passarmos pela possibilidade de termos de cortar a corrente, pois havia prendido em algum coral no fundo! Mexe daqui, tenta dali, e com a sorte que nos acompanha pela qual já somos muito conhecidos, tiramos o barco daquela situação sem maiores problemas.
De novo, fazendo rota pelo caminho, algo que eu já tinha tirado dos meus maus hábitos, mas, mar aberto pela frente, todos eletrônicos ligados, ajudando a considerar as situações, e fomos a caminho de Pinang, onde chegamos no final da tarde do dia seguinte ao problema da má escolha de ancoragem, atracando na marina da cidade de Georgetown. Vamos aproveitar a cidade, conhecer algumas iguarias e lugares locais, depois de cuidar do barco, estimando partir para Langkawi em dois a três dias.
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