terça-feira, novembro 28, 2006

Detalhando a Rota e ajuda de irmão velejador de Natal:

Na última postagem do blog, discutimos as variáveis e considerações para se planejar uma rota. Uma vez que temos a rota planejada, chega a hora de trabalhar no detalhamento dela. Isso porque o mundo está cheio de portos com entradas cheias de manhas, perigos mal-detalhados nas cartas e quanto mais você conhecer os detalhes de corrente, marés e ventos da região, melhor preparado você estará. No meu caso — graças a minha experiência profissional — tenho uma grande facilidade para lidar com computadores, sistemas, arquivos, dados digitais, pesquisas na internet e outras mais facilidades que temos à mão hoje em dia. Comecei minha carreira trabalhando nesta área e nessa área me saí muito bem no mercado internacional. Portanto, eu abuso dela e, como não poderia deixar de ser, meu projeto depende e muito da era digital. E não é somente pelo uso extensivo de sistemas de navegação, como também de sistemas da comunicação digital, que é uma necessidade no meu caso (lembrem-se de que vou montar um escritório de trabalho operacional a bordo). Mais tarde, quando eu tiver avançado em minhas pesquisas na área de comunicação digital (seja por rádio, celular ou satélite), farei um relato especialmente sobre esse tema. Mas hoje eu vou discutir os sistemas eletrônicos de navegação, as cartas digitais, fotos digitais por satélite, guias de navegação e como usar tudo isso para detalhar minha rota. É mais simples (e divertido) do que parece.

Comecemos pelas ferramentas de trabalho, os sistemas de navegação eletrônica e a internet:

Uso basicamente dois sistemas de navegação. Um deles é muito popular, chamado MapSource versão 6.10.2, já o conheço há muito tempo e tenho boa familiaridade com ele. O outro é mais recente, e faz parte do sistema de navegação eletrônica do Matajusi. Ele chama-se RayTech Navigator versão 6.0 build 6275, da Raymarine. O MapSource usa cartas digitais da Garmin, muito boas para os Estados Unidos e Europa, mas pouco detalhadas e com muitos erros grosseiros para todo o resto do mundo. Já o RayTech, assim como o sistema E 80, da RayMarine usa as cartas digitais da Navionics no formato Gold CF.Eu já tenho as cartas mais recentes da Navionics para a América dos Sul, Caribe, América Central e Pacífico. Ainda faltam as costas Leste, Sul e Oeste da África do Sul, Oceano Índico e mar de Arafura (ao norte da Austrália). Eu já solicitei (mas ainda não recebi) as cartas mais recentes para o MapSource, portanto uma comparação entre elas fica para o futuro.

Além das cartas internacionais, recorro a vários guias locais. Para a costa brasileira, consulto o do Marçal Ceccon. Para as ilhas do Pacífico, o Land Falls of Paradise, de Earl R. Hinz. Isso, lógico, além da bíblia de cruzeiros globais, o World Cruizing Routes, do Jimmy Cornell. Pela internet, acesso o Google Earth Plus, que uso para uma "olhada aérea" sobre os portos e costas por onde vou passar. Algumas dessas áreas têm imagem bem limpa e sem nuvens, como a Cidade do Cabo na África do Sul, onde quase podemos ver as placas dos carros passando pela estrada ao lado das marinas.

Juntando os dados:

Começo o detalhamento sempre lendo a informação no guia disponível para a área. Depois, eu consulto a carta digital e, por último, "tiro uma foto" aérea do local, usando o Google Earth. Os pontos de referência no Google Earth vão servir para referência visual quando eu passar por aquele lugar. Assim, vejo os detalhes explicados no guia, detalhados na carta, e fisicamente visíveis na foto por satélite. O sistema RayTech, assim como o E 80, permite a sobreposição de múltiplos tipos de cartas digitais com a posição do barco medida por GPS, fotos digitais do local, a imagem gerada pelo radar dos obstáculos rastreados e até os detalhes do fundo medidos pela sonda. Tudo isso nos dá a segurança de estarmos no lugar em que deveríamos estar. Lógico que aqui vale uma ressalva, pois muitos comandantes (principalmente os mais antigos) acreditam que toda essa parafernália eletrônica sempre pode parar de funcionar no lugar errado e na hora errada. Pra ser sincero, acho que eles têm um pouco de razão, mas se tivéssemos continuado a acreditar que a terra era quadrada, nunca teríamos dado a primeira volta ao mundo.

Ilustrando esse detalhamento:

Exemplo, Natal: Vamos supor que estamos navegando pela costa Norte do Brasil e queremos entrar em Natal para descansar, reabastecer ou mesmo para esperar até o mau tempo passar. Usando o Guia Náutico da Costa Brasileira, do Marçal Ceccon, na página 28 temos uma figura com o detalhamento da rota de entrada em Natal. Usando as informações ilustradas pelo Marçal, criamos uma rota exatamente idêntica à sugerida por ele, usando nosso sistema de navegação RayTech, plotando tudo sobre a carta digital do Leste da América do Sul. À medida que fazemos isso, vamos checando as referências do guia na carta digital. No final, temos algo bastante equivalente às referencias feitas pelo Marçal:

A notar, existe uma bóia verde fora da entrada do porto de Natal na carta digital, mas ela não está mencionada no guia. Nessa altura, temos que fazer uma avaliação mais detalhada. Vamos ao Google Earth e damos um zoom sobre essa mesma área de Natal. No Google Earth podemos ver exatamente a área indicada pelo Marçal, com vários barcos e veleiros ancorados. Podemos ver também barcos do outro lado (NW), a direção das ondas, o recife Cabeça de Negro mencionado no guia e na carta digital. No entando, não conseguimos confirmar ou não a existência da bóia verde da carta. Ainda assim, com toda essa informação, já me sinto mais apto para aterrar e ancorar em Natal.

Esse trabalho de detalhamento é feito para toda a rota. As informações são guardadas em arquivos digitais para serem usadas depois, durante a viagem. Outro trabalho de preparação consiste na análise detalhada das cartas digitais, e não somente nos portos. Eu anoto os perigos da navegação na rota, na forma de waypoints e círculos de zona de perigo, para me alertar se a rota real chegar perto desses perigos. Como exemplo, vou ilustrar a rota entre Rarotonga e Tongatapu no Sul do Pacífico, onde existem perigos no caminho, alguns ainda sem registro nas cartas.

Começo a pesquisa no guia de cruzeiro (World Cruizing Routes) do Jimmy, pagina 397. Ali ele detalha essa rota e menciona alguns perigos conhecidos, como o Harran’s Reef e o Albert Meyer Reef, e comenta dois acidentes conhecidos naquela região. Um veleiro bateu em obstáculo não identificado nas cartas na posição estimada de 21°43’ S com 167°46’ W durante a noite, afundando logo em seguida. Essa posição não esta marcada em nenhuma carta disponível. Na dúvida, o que faço? Entro a posição na minha carta digital, marco com o ícone de perigo e coloco um círculo em volta para me alertar no caso de estar navegando por aquela área.

Noto o NoName Reef pegado ao Harran’s Reef, demarcado na carta. Jimmy menciona outro acidente com um veleiro que foi afundado por uma onda gigante na altura do Breaker’s Reef. Esse recife está marcado na carta, então realço ele com meu próprio waypoint, além do ícone de perigo e o círculo em volta, que não podemos ver nesse nível de zoom, mas que fica muito evidente quando estou em zoom de navegação. Agora vou ao Google Earth e faço as mesmas marcações:

Noto que os waypoints estão muito distantes das formações que se vêem nas fotos do satélite. Acredito que isso seja parte da falta de acuracidade das marcações de latitude e longitude do Google, muito por causa da curvatura da terra, onde essas linhas são aproximadas e não reais. Mas, de qualquer forma, consigo perceber que tem algo por ali, e que é necessário tomar todos os cuidados necessários para não estar em nenhum desses lugares com recifes desconhecidos e onde estouram ondas gigantes.

Outro trabalho que faço é comparar as informações dos guias com as das cartas e as do Google Earth. Anotei no Google os waypoints do Albert Meyer Reef do livro do Jimmy, e os relacionados na carta digital, e fiz uma medição contra a imagem que aparece de uns recifes no Google Earth e noto as diferenças! O waypoint do livro do Jimmy está a 46,04 milhas do recife na foto do Google e o waypoint da carta está ainda mais longe, diferindo também da anotação feita pelo Jimmy. Ou seja, além de termos que nos ater aos mínimos detalhes de todas as informações disponíveis, tanto nas cartas náuticas, como nas cartas digitais e nos guias náuticos, temos também que ficar de olhos constantemente atentos ao nosso redor, além de deixar os nossos ouvidos abertos para os mais experientes, como os nativos locais. E, além de tudo isso, conforme mencionei no meu último relato, devemos considerar a nossa estrela, o nosso santo e a nossa sorte, pois de nada adiantariam todo esse detalhamento, se tivermos o azar de estar no lugar errado, na hora errada, como a exemplo dos dois veleiros perdidos mencionados acima.

Conforme já disse anteriormente, cada comandante vai definir o seu barco, as suas rotas e os seus métodos. Eu espero que meu método venha a ajudar alguns desses novos comandantes do futuro, que, como eu, vão acreditar que a era digital veio para ficar e para ajudar.

No próximo relato, voltarei a falar sobre a construção do barco, algumas mudanças do plano original e os próximos passos estimados para o andamento do projeto.

Nosso irmão de mar Nelson Mattos Filho, nos mandou o seguinte comentario, confirmando a existência da boia verde na entrada do porto de Natal:
"Olá Silvio Ramos, sou velejador, cruzeirista, sou de Natal/RN. Moro com minha esposa em um veleiro velamar 33 com o nome AVOANTE I, estamos fazendo um cruzeiro pelo Nordeste brasileiro. Por enquanto estamos de volta a Natal. Participamos da ultima regata Recife-Fernando de Noronha, e resolvemos dar uma passada em nossa terrinha. Lí seu artigo na Nautica On-line, com o titulo "Detalhando a rota com auxilio de guias e eletronicos ". Voce exemplificou a Carta do Porto de Natal, e falou da Boia Verde, na entrada do canal, e não ter certeza de sua existencia. Ela existe sim e esta muito bem detalhada nas cartas nauticas. Quero dar os parabéns pelo projeto MATAJUSI, e dizer que se precisar de alguma colaboração de nossa parte, pode contar desde já."
Essa colaboração dos irmãos de mar definem bem um dos objetivos desse projeto, compartilhar informações sobre nossas travessias e aventuras pelos mais longínquos cantos do mundo!